12 agosto 2011

Música



Morava numa cidade pequena, numa rua sossegada, numa casa bem grande. Mas dizer que morava soa até engraçado, dizer que morava dá ideia de lar, coisa que aquele casarão nunca fora. Era mesmo um lugar onde o menino aprendera a viver, sua mãe trabalhava ali desde que se sabia gente. E o menino ficava a seu lado, não porque quisesse, sua mãe o amava a sua maneira, calada e carrancuda, maneira de amar essa que o fizera chorar muitas vezes quando criança. Hoje porém o menino já era rapaz, praticamente homem feito e essa maneira de amar, as avessas, só trazia desprezo. Ficava alí porque precisava, porque não tinha pra onde ir, não tinha porque ir. Muitas vezes pensou em ir embora, mas faltava coragem, ou talvez faltasse vontade... a bem da verdade seu motivo era mais que uma falta, era mesmo uma presença, aquela tal música. Às vezes um piano, outras um trompete ou talvez uma flauta.Era uma música que vinha ele não sabia da onde, só sabia que às vezes, no fim da tarde enquanto cuidava do jardim ou varria alguma calçada, ela vinha descendo, lá do alto da rua e lhe chegava aos ouvidos. Aquela melodia. Trazia cheiros, imagens e o rapaz sentia saudade de um passado que não vivera.
Depois ia embora, levava com ela aquele mundo, aquela vida saudosa e sem identidade que só a música parecia conhecer. E o rapaz continuava o seu trabalho, e se trancava novamente em sua revolta, em sua raiva do destino que o fizera um empregado, praticamente mordomo, sem direito de falar ou querer, com raiva de sua mãe, que seguia submissa, e das pessoas que pareciam não notá-lo. Observava-as passarem na rua, elegantes, cheias de si, rumo aos seus casarões, sempre nariz empinado.
E havia aquele homem, sempre aquele homem, que passava de preto carregando seus papéis com ar de importância. O rapaz não sabia o que era, mas alguma coisa na insignificância com a qual aquele homem olhava para ele o incomodava em especial. As dores pesavam, as angustias e revoltas se acumulavam e ele tinha vontade de fugir, não importava pra onde, fugir dalí, daquele lugar, daquela vida, daquele destino... mas logo a tarde caia e a música chegava, serena, parecendo adivinhar suas dores. Calava sua lamurias, secava suas lagrimas, tirava-lhe o peso e ia embora. E como que com as baterias recarregadas ele continuava seguindo, apenas esperando, esperando que voltasse sua música.
Mas naquele dia ela não voltou. Naquele dia, como que por luto, o céu amanheceu cinza e as flores, pálidas. O que os olhos do rapaz viram o coração não comportou. Sua mãe, jogada no chão, olhar vazio e conformado, uma única lágrima rebelde contornando-lhe o rosto. E o patrão, apressado e desajeitado fechando as calças e arrumando os cabelos. Saiu e sequer olhou para trás.
O rapaz correu, sangue nos olhos, o facão que usava contra as ervas daninhas do jardim ainda na mão. Não foi ajudar a mãe, nem tampouco se vingar do patrão. Correu para rua, sem rumo, para longe, longe daquele lugar ao qual nunca pertenceu, onde ficou tanto tempo com medo de não pertencer a lugar nenhum, correu sem destino. Correu e trombou. Trombou com um homem. Não um homem, aquele homem, que passava de preto, sempre o mesmo olhar de insignificância, cruzando a rua como se não pertencesse ao mundo e nem se importasse com ele. O rapaz não pensou, tomado pela raiva e pela dor, apenas agiu, apertou o facão com as mão trêmulas e matou. Matou aquele homem... matou aquele olhar.... matou aquele ar de importância. E talvez o rapaz nunca soubesse que naquele momento de ódio e rancor, sem sequer suspeitar, matou seu consolo. Matou sua música.