14 junho 2017

Trincheira

quando o amor nascera
- mesmo que imperfeito
por entre os meus pés -
fora um passáro sublime
a povoar minhas veias
e abrir-me
do centro aos braços
- como a coreografia das árvores -
para a eterna cadência da vida

depois partiu

e eu intrigada
perco as horas olhando meus pés

será que foram amputados e eu olhava para o nada 
na ilusão de vê-los?
talvez o amor
tenha levado meus pés embora
para que nada
nunca mais
me chegasse da terra
e eu vivesse descolada

         com as

           copas


       sempre abertas

Púrpura

Nas horas da tarde
a poesia bate à porta
com urgência.
Angustio-me por não saber seus vetores...
É poesia com certeza,
Mas não sei se de dentro para fora
ou de fora para dentro.
E é preciso tanta coragem...
o mal da vida é isto:
as coisas não se dão a quem não se dá
e no entanto, ô meus Deus, o medo
 é tão cheio de truques, de máguas...
 eu só queria apertar o canto dos olhos
contra o céu rosado,
ter a coragem de falar dos passarinhos.
Tomar nos braços a tarde,
Tragá-la ao peito,
Ou vê-la entrando pelo sexo
no meio das pernas molhadas.
Mas mesmo assim balanço os pés
como que prevendo a finitude da vida.
Rasgo as horas com a caneta sem nunca
deixar de olhar o céu
e depois conto as contas do terço vermelho
na luz amarelecida da cama de palha...
Numa tarde dessas há tanto perigo
se ao acaso passa um trem.
Seu gemido grava na tarde um tal estado de poesia
que chega a fazer oco no peito da gente.
A alma vai solta nas bordas de um suspiro
e deixa-se alongar ao outro lado do pasto
 junto às últimas curvas do raio de sol.
Queria falar bonito de você como outro dia falei
numa poesia que não escrevi.
Mas a poesia não se dá à prestações
e não é possível dizer do que não pulsa
no próprio instante
que de tão púrpura
exagera a urgência.
A tarde é um rio atravessando-me como o gozo
que não tenho no meio das pernas.
Depois passa e eu já não posso dizer as coisas que dizia
porque não sinto.
O poema não se presta a traduções.
Sua verdade é autosuficiente
e existe sobre o testemunho de si própria.
Tenho medo de levantar e perdê-lo por entre os dedos
ao mesmo tempo em que sou constantemente invadida
pela luz de seus dois olhos.
Se talvez algum dia eu não tiver nenhuma pretenção,
ou se aceitar a possibilidade de falhar para sempre...
eu possa tomar nos braços a invasão púrpura da tarde,
eu possa dizer os segredos dos seus dois olhos verdes...



Rua

depois
será eterno seguir o chão
pisar a terra com pés de estrela,
olhos de lua,
deitar o asfalto com braços de vento
e em cada pulmão um
planeta,
descendo por entre as
pernas por entre as veias
por entre as copas
até o que quer que haja vivo
no peito dos homens
dançar com ouvidos calados em favor
do sussurro dos sonhos e passos amainados
em favor das cadências da alma e você... se tiver os olhos fechados
e te puser a ver


                              - nutridos que estaremos
de segredos que encerrávamos
e não sabíamos 


moveremos moléculas!



Suspensão

As filas cansam-me especialmente.
Há um peixe prateado que nada na minha cabeça.
Penso nas filas e nas pessoas das filas que aguardam um lugar para uma pessoa.
O potencial cancerígeno que há nas filas e no ato de comer
- acima de dormir, acordar ou gozar – sozinho.
Sobretudo esperar sozinho na fila para comer sozinho.
O peixe para.
Dormiu...
Não quero pensar nas filas
E no câncer.
Penso na hora dos peixes:
Dormem? Quando dormem? Porque dormem se, lá embaixo, descansam eternamente do furduncio do mundo?
Passo a pensar em atividades terroristas
Na má distribuição de aquecimentos básicos –
Deveríamos ter as horas de sono dos peixes
Ou o silêncio
Dos peixes
Ou ainda, nem que fosse, sua textura
             (centenas de vidas dedicadas
               á captura dos reflexos lunares)
O peixe parado dorme. Sonha a arquitetura pós-moderna dos corais.
Se estivesse posto ao mar, talvez não dormisse, mas porque está em minha cabeça dorme.
Também eu dormia
fosse um peixe em minha cabeça.
Tomemos que nada no mar e que se atira
mas não despenca
porque debaixo do mar onde nada
há também mar.
Tomemos que não está sob a ditadura da minha insanidade.  
Jamais dormirá.
Será peixe enquanto inventamos o calendário astrológico dos signos para explicar a necessidade anímica de dormir e ser peixe.
Será peixe descansado e distraído ainda que inventemos uma aba muito pequena do Oceano Índico onde poderá legalmente transitar na condição de peixe.
E nos aqui em cima inventaremos que é preciso lavar a nuca e os pulsos antes do sono –  a regra única que nos fará peixes de madrugada.
Mas esqueceremos depois de 2000 anos
e então tomaremos cerveja
Inventaremos a zumba
Jamais seremos bestas
Mas seremos sempre tontos
Descortinando armamentos bélicos sobre as divergências
E incidiremos com tamanha brutalidade sobre as horas
Que acordaremos um a um todos os peixes do mundo.

Olha meu peixe prata, sou demasiado bruta, mas gostava que tu pudesses não ser acordado nunca.



Gado

a lua precipita por detrás dos prédios
 como se em cada aresta apoiasse um
feixe de luz

 lá de longe talvez não saiba mas
seu brilho manso faz silêncio em
toda a vida da gente

 faz da cidade quase pasto  
e se não fossem as vidas largadas na esquina
a gente andava esquecido
da morte
e deitava as costas na calçada adivinhando
qual cume quadrado seria pouso
de seu último toque

desejosos de que ela ainda se demore
e  que ainda que se vá
depois retorne
 e faça
dessas rua pasto

 desse gado gente

28 setembro 2016

o dedo velho
entre os cigarros  e
uma caneta
embora nunca se tenha visto
segurando um
cigarro depois de
 velhos
mas que para mim sempre
foram velhos
e também os olhos
sempre velhos
mesmo muito antigamente
quando seguravam um cigarro e
uma caneta
as rugas que observo
de cada dedo
e também os olhos antigos
sempre antigos 
 embora naquela época 
e também a língua
a quem me desculpo
por buscar o gosto do álcool antigo
o cheiro antigo do cigarro
os olhos antigos
querendo beber as mesmas coisas
querendo beber
cuspir e
babar sobre mesmo papel
o estômago a quem peço desculpas
por embrulhar junto ao meu
e depois babar cuspir
e lamber
as mesma coisas
sobre o papel
os olhos tão antigos
quanto os seus sempre foram
antigos sobre o papel
e os cigarros enrugados
o dedo embrulhado
o estômago aceso
a caneta com gesto de álcool antigo
e o papel
as mesmas coisas  
o cigarro
a caneta
a língua
a quem
peço desculpas
eu e o pequeno menino Mogli
embora ele não saiba que pede
desculpas embora esteja tão
magro e por isso devesse talvez saber
pedir desculpas às nossas línguas
ao ácool antigo entrecruzado sobre
o papel



não sei dizer as coisas que você dizia
por isso

talvez

não ponha nunca um ponto final

Fragmentos

I
porque ser forte? porque o medo de cair? por que se não não dá pra voltar? e porque afinal alguem nos fez andar se a regra é não cair? e porque a regra não é sempre voltar? por que o medo? porque não cair toda vez que for... humano?
II
quem inventou que é preciso ser forte?
é mentira.
Mas eu não tenho certeza.
III
quero parar de tossir.
IV
sempre escolho o tapete
é a minha variante: o tapete é cair
 a cama é a regra
mas amanhã de qualquer forma
acordarei e farei tudo o que devo fazer
porque só me arrisco até o tapete.
Isso é bom.
Mas não tenho certeza
V
quero parar de tossir
VI
(um telefonema me acorda e fico órfã.
odeio as pessoas que simplesmente desligam os enganos.
perdoe minha falta de iniciativa eu ouço exatamente tudo o que o seu ‘mãe’ quer dizer e no entanto digo alô e por isso você se aborta e por isso eu fico órfã e nunca mais poderemos dizer nada um ao outro)
VII
está quente outra vez

VIII
só tem uma estrela no céu e a que está do lado cai
eu não tenho certeza,
mas digo para ela me dizer que vamos ficar bem

Gira

tínhamos toda uma folhagem
coreografando bambolês
no giro do vento

você não soube mas eu te via atrás
do vaduto entre as ferrúgens
quadriculadas da paisagem

teu nome cidade é um corpo de
Oxum descansado
tens em teu peito a Lapa
e mais ao centro toda a galáxia

jorra feito as ondas coloridas
dos panos no vento
mil chapéus traçando a dança
dos ares
dois ou três requintes de
movimento
do chão ao chão os pés aos
pares
de corpo aberto o peito ao
centro

talvez sejam só dez ou vinte erês
girando na roda
mas o afeto desenhava
 trajetórias milenares
cheias de um tanto de gente

nós não sabíamos
mas éramos ecos desobstruídos
atravessando as épocas
e as paragens

tínhamos toda uma galáxia
coreografando bambolês
no giro do tempo

Ausência

são duas lágrimas que pendem miúdas
são minhas
são duas velas
deixei-as acesas no centro do peito
vela de preencher em mim mesma
as vazias regiões internas

as duas chamas são jades
me espreitam
vigilantes queimando a garganta
enquanto insisto em fitar os dedos
 e os recolho
depois os beijo
sussurro na beirada das unhas
 a ausência da tua barba ruiva
o peso inexistente de tua mão em
minhas pernas

e depois é ainda preciso dizer a elas
que se acalmem recolham o desejo
que não se cruzem
que fiquem quietas
que se abram e eu chegue ao seu meio...

é uma gota que pende chorosa
chama acesa no meio das pernas

cuspo em meu
dedo e a faço
subir
por entre os rins me
queimando as
entranhas
por entre as vértebras
rasgando as
costelas
até trancá-la também
junto ao peito...

sâo já tres jades espreitando a garganta
e eu calada dizendo em silêncio

a tua ausência

em minhas pernas

a tua ausência

por entre os meus dedos