18 julho 2015

Lunar

a noite tem potência discreta
de fazer das coisas-parcas coisas-flor

existem na noite delírios lunares
de exatíssima matemática-cor

apenas a lua revela
as lentas e lânguidas  curvas
ao sol caladas

para inventar
químicos determínios
e construir
lagos fictícios
por entre as luzes

houve nalgum dia um
menino preto
que pulou a janela
preta na
noite preta
para fins pouco
arquitéticos
de matemática-cor

alguém o sonhou um menino
vaga-lume
e depois
deu-lhe a graça de fazer
estrelas
e depois deu-lhe fitas
e depois
chamou-o: Tomás

houve noutro dia
Deus e Tomás que
 fizeram
lado a lado
no encontro das
mãos um espaço
inevitável de
habitar silêncio e dor

mas de tudo o que se fez
 foi apenas Tomás
quem providenciou estrelas
                 

Lilases

o mar contempla-me o rosto calado
e olhos alaranjados
que pescam contraste entre verdes

Joplin e quilômetros mais
ditam cry baby
cry
aos meu olhos
no entanto calados
no entanto
alaranjados

há pouca monotonia no silêncio
há pouco espanto no inverossímil
                        - os olhos tem asas
                          as pausas tem asas
                          no peito estão asas que levam
                          ciclicamente
                          aos mesmos lilases

tu Lilás
tua pele e tom lilás
é lilás na distância e em minha boca
é lilás entre minhas pernas e entre meus dedos
lilás teu afago e teu som
lilás meu desejo

24 maio 2015

Mariana


a poesia diz (dois pontos)
existem motivos
para tudo
que é simplesmente
Ana quando sorri
quase fecha os olhos
seria demais para o mundo
ter de Ana
olhos e sorriso
ao mesmo tempo.
Eu
quando faço poesia
de seu sorriso
corro o risco
de violar as leis
do simplesmente
(poeta tem prepotência
de falar coisas
que moram no silêncio)
Ana tem algo doce
 entre seus dentes
e estrelas no céu
de sua boca
Ana diz (dois pontos)
gosto de observar as formigas
(não fere as leis do simplesmente).
Eu tenho calos
 na garganta
e não digo das flores
a menos que seja
pelas janelas
sei da potência das nuvens
em assumir
 formas-tartarugas
mas não digo
 que Deus é um sonho
que não mora na noite.
Maria toma sol
acalenta calos
(se é que os tem)
descreve flores
acredita em Deus
diz (dois pontos)
o sorriso de ana
(não fere as leis do simplesmente)
Eu me escondo
 em buracos
não sou Maria
não sou Ana
tenho medo
tenho calos
e ademais
a prepotência dos poetas
e ademais
a prepotência dos poetas

                - felizmente



30 abril 2015





Pela terceira ou quinta vez sento-me a mesa e tento dizer que existe nela um espaço de morte de pássaros. Mas o espaço não me chega, embora fume muitos cigarros
- porque sei que há uma relação estreita entre cigarros e o espaço da morte de pássaros.
Mas o espaço não me chega, embora eu a tenha criado apenas para que houvesse nela esse espaço: minha imagem e semelhança, e um espaço onde não sou lama. Se houvesse naquela minha criatura tão bem criada um espaço de morte de pássaros, então a minha própria podridão e os meus agradáveis passeios até a imatéria necrosada de mim mesma não seriam condenáveis.
Mas não há.
Forço o cheiro de decomposição e grito do fundo de meu ódio que na minha criatura tão bem criada é preciso haver o mal, é preciso que ela seja podre e que enjoe e que vomite e que se esqueça e que condene e que mate um pássaro.
Mas se tento por em suas mãos a morte do pássaro encontro-a sempre transpassada pelo sol, num corpo improvável, anexando eternos – apenas os mais sublimes.
Ela é lago margeado por um corpo improvável que anexa eternos.
O que ela é tem delimitações da ordem do ser, por isso corpo. Porém o corpo não precisa delimitar-se e tem potencia de improvável, por isso eternos. Ela é a reação de eternos, e por fora corpo.
            [Uso seu corpo improvável para abrir o espaço.
 Atravesso-a com agulhas até as vertigens e dentes serrados. De baixo para cima faço-a arder e – porque sei que posso – ateio fogo em sua estrutura lago.
Mas não há.
A morte é o mais forte eterno reagente - ela é toda cruzada de sua própria morte. E, no entanto, não posso por em suas mãos a morte de um pássaro. 
É lago denso e profundo e contém os 360 enganos que há nos profundos lagos – mas não esse espaço.
Sabendo que lá dentro há lama – a lama é o cerne de todo lago – me afogo na minha criatura tão bem criada porque preciso achar a morte de um pássaro

 e ela me anexa – porque já tenho todos os cigarros molhados.   

19 março 2015

Durou cerca de trinta segundos.

Ou talvez seja melhor assim: Aconteceu certa vez – a alguém que ainda não decidi se serei eu mesmo ou apenas “ele” – e durou alguns segundos, que tanto podem ser trinta, como podem não ser.

Não tem de fato nenhuma importância no que diz respeito ao rumo que as coisas tomaram, no que diz respeito aos acontecimentos futuros, ou no que diz respeito à relevância das coisas relevantes. Mas ficou-me sempre esse eco sem propósito.

Peço perdão aos ecos. Por muito tempo – um tempo tão muito como o sempre – os ecos seguem reverberando coisas as mais atávicas ou sublimes e a despeito de não serem vozes, atravessam abismos – inclusive os de lama, inclusive os de podridão, inclusive os meus.

Mas o eco que me ficou não têm propósito. Não tem porque não pode haver propósito em eco do que deveria ter sido feito a respeito de acontecimento que não altera o rumo das coisas. Um eco que só serve para chafurdar na lama do meu próprio abismo.

É ainda incompreensível o motivo pelo qual fitei a árvore e permaneci fitando-a durante aqueles segundos que tanto podem ser trinta como podem não ser. Permaneci fitando-a enquanto às minhas costas você corria a longa escada.
Não foi apenas pelo vento na árvore que repentinamente tornou-se dança... também o fogo gelado crispando-me toda a musculatura.

Os segundos perderam a natureza de tempo.

O começo foi a árvore no topo do prédio. O prédio ficava na diagonal e a árvore em seu topo. Ela marcava o ponto exato em que o horizonte cortado por prédios passava a ser só o horizonte, sem prédios. É por isso mesmo que estava sempre sendo mexida pelo vento. Não havia nada de extraordinário, até traçar-se a dança. Começou com árvore e vento traçando-se dança. 

Depois o fogo gelado, crispando um por um todos os músculos do corpo. Havia esses sintomas... e você correndo a escada.

Eu sabia com olhos outros.

É preciso retroceder porque errei grosseiramente. Havia também esse sintoma. 
Então eram: árvore, músculos, por fim os olhos outros... e você correndo a escada.

Eu sabia com os olhos outros de seus pés tocando o chão - os pés brancos, o chão branco, ambos nus. Um, e no degrau a baixo o outro, e no degrau a baixo mais uma vez o primeiro – ambos nus e brancos. Eram dança como a árvore.

Eu sabia com os olhos outros do seu cabelo, que descia logo atrás do corpo, tentando alcança-la incansável e reverberando cada encontro do pé com o degrau. Estava nu e era também dança.

Pergunto-me a quantas pessoas já acontecera segundos perdidos da natureza de tempo.

Lembro-me de uma vez em que estava no ônibus e uma senhora entrou segurando na mão direita um broto de manjericão e na mão esquerda uma única batata. Pensei em te fazer uma ligação dessas que a gente não faz, apenas para dizer: “Não é engraçado que eu estava no ônibus e uma senhora entrou, carregando na mão direita um broto de manjericão e na esquerda uma única batata?” Mas eu não liguei, exatamente porque essas são ligações que a gente não faz.

Naquele dia eu havia acabado de pegar um café na cozinha. Segurava-o sem beber porque ainda estava quente demais. Fui para a janela - talvez porque esperasse o café esfriar, talvez porque esperasse você descer, talvez porque tivesse mania de janelas. Lá embaixo uma senhora atravessara a rua.

Primeiro foi a árvore, depois os músculos, por fim os olhos outros... e você correndo a escada.

Eu sabia com os olhos outros do seu corpo em movimento, a contração exata de cada músculo por debaixo do vestido, a ereção dos pelos ao longo do braço. Estava lívido e era fogo gelado.

Eu sabia com os olhos outros do ponto de luz em seus olhos, o reflexo da janela que sumia momentaneamente na convergência dos cílios, apenas para reaparecer maior e mais luz a cada encontro do pé com o degrau. Eram seus olhos e luz, fogo gelado.

Lembro-me de uma vez, talvez tenha sido quando você falou que não me amava mais, caminhei até a explanada e sentei, tirando os sapatos de couro para molhar os pés na água suja que cerca a catedral. Deitei, ainda com os pés na água, e fitei o céu por um momento. Pensei em te fazer uma ligação dessas que a gente não faz, apenas para dizer: “Não é engraçado, que estando bem no centro de uma metrópole, eu veja os muitos carros e pessoas não tão distantes e a despeito disso tenha silencio? Um silencio atravessado por um zumbido constante que encerra o mundo numa bola de vidro, e eu o olho de fora, achando estranho porque estou do lado de fora e não faço parte de nada...”. Mas eu não liguei, exatamente porque essas são ligações que a gente não faz, e também porque você já não me amava.

Naquele dia havia um silêncio atravessado por um zumbido constante. Tirei os jornais de cima do sofá e separei mecanicamente os que haviam sido lidos dos que estavam novos. Peguei o café na cozinha e fui até a janela -  talvez esperando que o café esfriasse, talvez esperando que você descesse, talvez porque tivesse mania de janelas. Lá embaixo uma senhora atravessara a rua.

Primeiro foi a árvore, depois os músculos, por fim os olhos outros... e você correndo a escada.
Sabia com os olhos outros dos seus pés, do seu cabelo, do seu corpo... do ponto de luz e seus olhos.

O eco chafurda na lama de meu próprio abismo. Apenas com os olhos outros eu sabia que o vento zumbindo em meus ouvidos era o mesmo que te alcançaria alterando a rota do seu vestido e o movimento do seu cabelo. Apenas com os olhos outros eu sabia que a quase irreconhecível mudança de tonalidade do céu seria luminescência de cores múltiplas no ponto de sua retina.  

É incompreensível o motivo pelo qual fitei a árvore e permaneci fitando-a, enquanto às minhas costas você corria a longa escada.

Se anos antes tivessem me perguntado o que gostaria de fazer no momento em que os segundos perdessem a natureza de tempo, eu não saberia, mas minha resposta sempre fora: olhá-la correndo a escada.


Dança como a árvore, fogo gelado em meus músculos.