Durou cerca de trinta segundos.
Ou talvez seja melhor assim: Aconteceu certa vez – a alguém que ainda não decidi se serei eu mesmo ou apenas “ele” – e durou alguns segundos, que tanto podem ser trinta, como podem não ser.
Não tem de fato nenhuma importância no que diz respeito ao rumo que as coisas tomaram, no que diz respeito aos acontecimentos futuros, ou no que diz respeito à relevância das coisas relevantes. Mas ficou-me sempre esse eco sem propósito.
Peço perdão aos ecos. Por muito tempo – um tempo tão muito como o sempre – os ecos seguem reverberando coisas as mais atávicas ou sublimes e a despeito de não serem vozes, atravessam abismos – inclusive os de lama, inclusive os de podridão, inclusive os meus.
Mas o eco que me ficou não têm propósito. Não tem porque não pode haver propósito em eco do que deveria ter sido feito a respeito de acontecimento que não altera o rumo das coisas. Um eco que só serve para chafurdar na lama do meu próprio abismo.
É ainda incompreensível o motivo pelo qual fitei a árvore e permaneci fitando-a durante aqueles segundos que tanto podem ser trinta como podem não ser. Permaneci fitando-a enquanto às minhas costas você corria a longa escada.
Não foi apenas pelo vento na árvore que repentinamente tornou-se dança... também o fogo gelado crispando-me toda a musculatura.
Os segundos perderam a natureza de tempo.
O começo foi a árvore no topo do prédio. O prédio ficava na diagonal e a árvore em seu topo. Ela marcava o ponto exato em que o horizonte cortado por prédios passava a ser só o horizonte, sem prédios. É por isso mesmo que estava sempre sendo mexida pelo vento. Não havia nada de extraordinário, até traçar-se a dança. Começou com árvore e vento traçando-se dança.
Depois o fogo gelado, crispando um por um todos os músculos do corpo. Havia esses sintomas... e você correndo a escada.
Eu sabia com olhos outros.
É preciso retroceder porque errei grosseiramente. Havia também esse sintoma.
Então eram: árvore, músculos, por fim os olhos outros... e você correndo a escada.
Eu sabia com os olhos outros de seus pés tocando o chão - os pés brancos, o chão branco, ambos nus. Um, e no degrau a baixo o outro, e no degrau a baixo mais uma vez o primeiro – ambos nus e brancos. Eram dança como a árvore.
Eu sabia com os olhos outros do seu cabelo, que descia logo atrás do corpo, tentando alcança-la incansável e reverberando cada encontro do pé com o degrau. Estava nu e era também dança.
Pergunto-me a quantas pessoas já acontecera segundos perdidos da natureza de tempo.
Lembro-me de uma vez em que estava no ônibus e uma senhora entrou segurando na mão direita um broto de manjericão e na mão esquerda uma única batata. Pensei em te fazer uma ligação dessas que a gente não faz, apenas para dizer: “Não é engraçado que eu estava no ônibus e uma senhora entrou, carregando na mão direita um broto de manjericão e na esquerda uma única batata?” Mas eu não liguei, exatamente porque essas são ligações que a gente não faz.
Naquele dia eu havia acabado de pegar um café na cozinha. Segurava-o sem beber porque ainda estava quente demais. Fui para a janela - talvez porque esperasse o café esfriar, talvez porque esperasse você descer, talvez porque tivesse mania de janelas. Lá embaixo uma senhora atravessara a rua.
Primeiro foi a árvore, depois os músculos, por fim os olhos outros... e você correndo a escada.
Eu sabia com os olhos outros do seu corpo em movimento, a contração exata de cada músculo por debaixo do vestido, a ereção dos pelos ao longo do braço. Estava lívido e era fogo gelado.
Eu sabia com os olhos outros do ponto de luz em seus olhos, o reflexo da janela que sumia momentaneamente na convergência dos cílios, apenas para reaparecer maior e mais luz a cada encontro do pé com o degrau. Eram seus olhos e luz, fogo gelado.
Lembro-me de uma vez, talvez tenha sido quando você falou que não me amava mais, caminhei até a explanada e sentei, tirando os sapatos de couro para molhar os pés na água suja que cerca a catedral. Deitei, ainda com os pés na água, e fitei o céu por um momento. Pensei em te fazer uma ligação dessas que a gente não faz, apenas para dizer: “Não é engraçado, que estando bem no centro de uma metrópole, eu veja os muitos carros e pessoas não tão distantes e a despeito disso tenha silencio? Um silencio atravessado por um zumbido constante que encerra o mundo numa bola de vidro, e eu o olho de fora, achando estranho porque estou do lado de fora e não faço parte de nada...”. Mas eu não liguei, exatamente porque essas são ligações que a gente não faz, e também porque você já não me amava.
Naquele dia havia um silêncio atravessado por um zumbido constante. Tirei os jornais de cima do sofá e separei mecanicamente os que haviam sido lidos dos que estavam novos. Peguei o café na cozinha e fui até a janela - talvez esperando que o café esfriasse, talvez esperando que você descesse, talvez porque tivesse mania de janelas. Lá embaixo uma senhora atravessara a rua.
Primeiro foi a árvore, depois os músculos, por fim os olhos outros... e você correndo a escada.
Sabia com os olhos outros dos seus pés, do seu cabelo, do seu corpo... do ponto de luz e seus olhos.
O eco chafurda na lama de meu próprio abismo. Apenas com os olhos outros eu sabia que o vento zumbindo em meus ouvidos era o mesmo que te alcançaria alterando a rota do seu vestido e o movimento do seu cabelo. Apenas com os olhos outros eu sabia que a quase irreconhecível mudança de tonalidade do céu seria luminescência de cores múltiplas no ponto de sua retina.
É incompreensível o motivo pelo qual fitei a árvore e permaneci fitando-a, enquanto às minhas costas você corria a longa escada.
Se anos antes tivessem me perguntado o que gostaria de fazer no momento em que os segundos perdessem a natureza de tempo, eu não saberia, mas minha resposta sempre fora: olhá-la correndo a escada.
Dança como a árvore, fogo gelado em meus músculos.