29 janeiro 2016

Um manso deus que anda nu

Eu trancada sobre pedras até o horizonte
E porque tenho em meu peito o delírio de todas as tardes 
E porque queimo os pulmões, porque é tarde
E que para além dos pulmões tenho motos que cruzam os ares
                     - Tenho que fazer poesia porque sim.
Onde a aurora é mansa e o erro é manso
(E o erro é um manso deus que anda nu)
Nas janelas, sempre os melhores lugares
Assisto a derrocada dos relógios parados
E o signo dos tumores insistentes
Que incidem nas janelas, sempre os melhores lugares
(porque emolduram dentre anjos, brancas luas e linhas passadas)
E que me fazem nua se o pretendem
E que me fazem mansa como os erros
De desmesura mansa por corredores roucos
Com os olhos, que os tenho fechados
Com os braços, que os tenho arrepiados
Como se, mansa, colhesse as estrelas 

rio (ou breve história da última vez que te vi)

cala-te
que ninguém
mais escutará
tua voz aquática
e haverá no futuro
brotinhos dados
a poesia
que nem saberão
da concreta geografia
que te esconde

sobre ti vai uma terra em que a liberdade terá preço insalubre e fétido
mas subirá sobre arcos de concreto oníricos ao luar

sobre ti habitarão
feras dementes
que sonham a
liberdade mas não
ousam tocá-la e
por isso calam-te
tu és livre demais
muito dado a não parar
diante de nada

em cima de ti
vai um matemático
e colocará o viaduto
embaixo do viaduto vai
um bêbado e colocará o carnaval
entre ambos
dançarão o broto
e o velho que voltou de Portugal
tocando um surdo
 e dizendo junto as massas que
os muros são de purpurina
    - tão  loucamente saudosos que estão
de seus espelhos

enquanto fingem a
liberdade para que
não vá outro calá-los
como a ti
molham-se de uma
água inexistente e
riem aglutinados
enquanto tu rio
ficará calado

             só saberá de ti
             um poeteiro anarquista
             que por hora desista mas talvez consiga
             te fazer
                       - In Memoriam -
             algum festejo local



Pena de Pavão

Chegou às beiras
de um suspiro morno de vento
luminesceu
de um sussurrado  infinito grito
pousou descalço
numa areada dança Luzia
cruzou o sol
                      Yesu   
                                Marrom
                                         um menino.


Inaugurou-se em meio aos bichos
              e os fez mansinhos
                                 à sua chegada
cada cabeça que
as colhia e serenoso
 sussurrava
a valsa lenta dos moinhos em
seus ouvidos cata-vento
          até fazê-los todos molinhos
          até tê-los todos babentos


A cada vez que amanhecia
designava ao sol
                               -  lantejar sobre gotas orvalhadas
                                  desenhando refrações de cintilância,
para depois ordenar às pedras
ser-se pedras
na continêcia de silêncio
e exatidões

Por quanto pisasse sobre a terra
     Yesu   
         Marrom
             tão menino
       movia moléculas.

À noite
    dançava o delírio dos cometas
    e a ciranda das estrelas
    em seus olhos
                           via láctea
Num devaneio aquático
lançava pinotes bailarinos
mapeando a areia árida
                             depois sonhava

Sonhou auroras róseas sobre um mar dourado atrás da pena de um pavão

  um planeta invisível
       na terra andaluz
       de espíritos transparentes
e       toda      alma      apaziguada
                                                            
Acordou suspirado e exaltante
e mais cruzou a areia trôpego
e depois venceu o deserto  
e depois caminhou cem luas
e depois a jornada de setecentos e cinqüenta dias

Estatelado na floresta

              parou à sua entrada

Perdida das vistas do sol
 a floresta  negrume
Acabrunha os respiros do dia.
Nada em movimento e
nenhum som.
  
Soluçantes
as folhas mortas
de arbustos roxos e prostrados
escondiam
a mágica criatura
     da pena portal
           do mundo sonhado

Yesu
 descalço
escorrega na mata adentro
         e perde das costas o deserto
          e cala na voz a valsa lenta
          e vai ficando melindroso
de um pisar
 todo em silêncio

Os pezinhos marrons e miúdos
deformam o brejo fétido
de árvores
 leprosas
que cospem
 ranhuras
contra as trepadeiras brutas
de espinhos pontudos
que o lanham
a testa

O chão encharcado borbulha olhos
 de mal olhado
que o rabiscam
em corpo menino
de  cicatrizes
entre as costelas

Os ouvidos de inspiração
a cada moita
mais parca
criam ruídos lamuriosos
por debaixo das copas mortas

Tirurugu iu iu iu  xiiiiaa
Tiruuurugu xiiiaa riui uiuiu

Tão marrom
     quase vai sendo brejo
     quase vai sendo bruto
e grita em resposta
contra o grunhido
do nada,
implorando aos charcos
     quase vai sendo mata


Transparente
meio espírito
liquefaz- se em
veias d’água,
vai carregado
em trombaduras,
via cortes muculentos
que o entregam
à cascata

No cume da pedra exata
 que sustenta as prateadas
 descidas d’água
o pavão airoso
tinge de azul
a luz negrume

Yesu disforme
de um olhar
tormento
no sonhado
mundo
se quer em
contento
 e sonha
sua alma
acamada em
 quentura

Numa aderência improvável
ascende ao afeto
por quanto abraça uma
a uma as pedras verticais
que o levam ao cume
por quanto abraça uma
a uma as pedras e
tenta ir ao cume
por quanto abraça uma a
uma por quanto fita indelével o
cume por quanto abraça uma
e depois nenhuma há
outra que o rejeita no
quase abraço do cume.

Estatelado no chão
Alonga a um retalho de céu
A pergunta do olhar magoado

Pende ao lado a cabeça
de olhos chorosos
que derramam planetas
e mira a mãozinha dormente
no lado mesmo em que vê
 antes de anoitecidas
as íris lunetas,
 portal aceso e
 luminante,
tanta cor!
entre os dedinhos
         amortecidos e
                     agonizantes

uma pena de pavão.

....................................................................................................

Mas se queres bem saber
vá falar com Yesu
diga a ele
 - bem sereno e bem alado -
que tu também quer mais andar
na morada de cristal
atrás da pena de pavão
do mundo

sonhado

Padre Eustáquio

Houve dia santo
em que choveu na cidade.
Três crianças foram ao céu
            - escoadas entre bueiros.
No centro do coração eucarístico
Deus não anotou
que chegavam ao paraíso.
Muito concentrado,
contava ave marias
que pagam pecados
de homens
que inundam cidades


Monotema

em todo caso
não deixei de
contar que guardo
conchas em uma
jaqueta sem bolsos
e que só sei brincar
de poesia com a lua
com as louras cerejas
e uma janela aberta e nua
ou uma miúda árvore na
esquina.
com as rugas de silêncio sobre
as lentes de contatos
e um sorriso alaranjado que
te chega à tarde

com as notas que tocam o
viaduto

........................................................
com as duas luzes acesas na
cidade


Meninos Abortados

dá-nos a tua mão inesperada
mãe  

que nós somos um grito ríspido a te inflamar os ouvidos sem querer que nós somos a parte que não cabe e habitamos as praças vazias do teu coração arregaçado e a parte fluxo e a parte podre do teu negro buraco

mas dá-nos
a tua mão mãe

que estamos crus sem querer e te ferimos a língua sem querer e queremos apenas tua mão inesperada que nos chegue quando seus olhos se alongarem até os pássaros
pois que apenas os meninos
abortados
compreendem a importância do acúmulo de gaivotas sobre um domingo violentamente branco  que basta um domingo violentamente branco para sermos violentados e um domingo branco para nos fazer fluxo
contra teu negro buraco

dá-nos mãe
 a tua mão

 que ainda assim quando se for nascer a manhã seremos nós a te pousar no ombro invisíveis a te puxar os cabelos sem querer e te expirar a insanidade das horas e te beijar as sobrancelhas e te chamar a atenção
 para os pássaros

raquíticos e crus a te tampar os negros buracos que habitamos invisivelmente as praças vazias dos teus olhos arregaçados apenas meninos
abortados

que conhecem a clemência e ninguém mais a diz a clemência e ninguém mais a faz a clemência e ninguém mais ama e nem conhece a pureza das mariposas e nem anota que de tuas preces borboletam mariposas
até nós

 e que teu corpo nu é quente por sob a água e que teus delírios são nossas lágrimas as dos meninos
abortados

e seremos nós eternamente a vagar do teu lado por entre tuas pernas e por debaixo de teus sussurros fazendo troça dos demônios insanos e sarcásticos assobiando melodias aquáticas em teus sonhos quebrados
descendo de
teus olhos
até a curva de
 teu braço
para
deitar
 invisíveis
entre teus dedos

 dá-nos mãe
tua mão esperada

Tarde nublada em - quase - primavera



O sol somente por retalhos
De entrecortados raios ralos
Me chega, o vejo, e não me beija
E nem a flor e nem a mim.
Porque é cinzento e a flor carmim
Acha que só a flor se veja.
Beija escondido e se esqueceu
Que mesmo em fundo breu do céu

É todo brilho mesmo assim.
tenho dezessete possibilidades de tentar algumas sistematicamente me levarão ao erro outras acharei corretíssimas tentabilíssimas serão falsas e patéticas posto que errei mais uma vez e mesmo assim as flores de teu vestido levaram-me a não sei que praça mas foi apenas por seus olhos apenas por seus olhos que tem o que os faz tanto mais que os seus braços tanto mais que os meus braços  e que minhas mãos são olhos tanto mais e ao menos dez ainda sobram e me confortam apesar da repetida  negativa em meus ouvidos constantemente a negativa em meus ouvidos repetidamente negando-me enquanto ainda há no mínimo cinco o que já são estrelas e encontros  -  cinco possibilidades me são na decorrência mais pouca ao menos estrelas e encontros – e poderei ainda saber o silencio da parede embora o silencio não me chegue onde se vai mais uma que nem as flores do teu vestido seguram-me e a tentativa de seus olhos foram água demais e não couberam e se esparramaram tão incontidos quanto é natural de água

e eu

tão

baixo

mas depois de três ainda duas que serão duas e que bom que duas – a via de regra do êxito é barrada por tapumes vermelhoalaranjados -  e a outra de qualquer forma serei sempre eu descortinado ou trajante de um sem número de ternurinhas que me darão ainda dezessete possibilidades de tentar mais uma vez  


Soneto da Infância Encontrada


Senti lamber-me em derradeira infância
Um calafrio de acabado sonho
Por entre as vértebras, sonso e medonho
Gritou calando-me a frágil criança.

Desfiz o laço da apertada trança
E a fita verde a amarrei no dedo
Só pra lembrar-me a mim mesma em segredo
Que em minhas mãos há segura esperança.

Tomei calada um qualquer Floratil
Tendo eu fé no que em nome era flor
Vi tanta graça em meu bobo ardil

Que fui sorrindo e fazendo calor
Em toda parte onde foi calafrio
Deixando verde o que fora incolor.